Percepção - cap 2


Eu estava praticamente dormindo, o tom monótono da professora de Organização do Trabalho Pedagógico, a Sra. Shultz, uma senhora de cabelos grisalhos que vez ou outra perdia o fio da meada. Clichê. Devo mencionar que ela era alemã? Creio que não, o nome é suficiente.


Você já deve ter percebido o motivo de eu estar quase dormindo, sem falar no meu dia cheio. Acordar cinco e meia da manhã, para seis horas pegar o ônibus e sete em ponto começar meu turno como auxiliar de sala em uma creche no centro. Da trabalho controlar tantas crianças juntas, mas eu gosto.

Já estava ficando cansada só de pensar que teria que enfrentar tudo de novo no dia seguinte quando eu ouço aquela voz sussurrando no meu ouvido.

"Boa noite, Bela Adormecida."

"Oi Eric, você me assustou."

"Desculpe, vim te chamar pra dar uma volta, quer comer um X-bacon com coca?"

"Pode ser. Quando?"

"Agora né."

"Eric, eu tenho aula. E você também, por que não está na sua sala?"

"O professor está em uma cirurgia."

"Nossa, assim tão de repente? O que ele tem?"

"Nada florzinha, ele é cardiologista. Eu faço medicina tá lembrada?

Eric é meu melhor amigo, o irmão mais novo dele era um dos alunos na creche, e um dia quando ele foi lá para apanhá-lo nos conhecemos. Ele era um excelente irmão mais velho. Sempre aparecia para pegar o irmão, sempre comparecia às reuniões no lugar dos pais, me fazia perguntas sobre crianças, esse tipo de coisas. O que importa é que ficamos amigos.

"Ok, você pode estar sem aula, mas e eu? Eu não posso matar aula, essa disciplina é importante."

Ele murmurou alguma coisa como: Todas elas são pra você. Mas quando eu perguntei o que ele tinha dito ele respondeu que não disse nada. Típico.

"Escuta Lí, você já está praticamente dormindo, garanto que não está prestando a menor atenção na alemoa."

"Alemã, Eric, alemoa não existe."

"Que seja, o que interessa é que você não está tirando proveito da aula, só está perdendo seu tempo ficando mais cansada. Vamos Lí vai ser legal. Eu prometo."

Ele tinha razão, inegavelmente.

"Tá bom, mas é só dessa vez."

Fomos para uma lanchonete perto da minha casa e como sempre ele me divertiu contando como as garotas tinham nojo de tudo.

"Como é que podem fazer medicina se não conseguem dissecar uma rã?"

"Sei lá, vai ter que perguntar pra elas, dizia eu entre risos, eu com certeza consigo."

"Sim mas você é a mulher mais corajosa que eu conheço, não tem medo nem de barata, qualquer dia desses te ensino a dissecar uma rã. Aí elas vão ver o que é uma mulher de verdade."

Caí em gargalhadas, até que percebi um pequeno detalhe. Ele me chamou de mulher, não de garota como ele costumava. Me chamou de mulher. Duas vezes. Isso me deixou feliz, por algum motivo que desconheço. Não tinha mais vontade de rir, muito menos de gargalhar, era uma sensação diferente, algo como um formigamento na ponta dos dedos dos pés.

Provavelmente Eric percebeu minha mudança, e também percebeu o motivo pois ficou sem graça.

"Já está tarde Eric, acho melhor a gente ir, amanhã tenho que acordar cedo."

"É, eu também."

Fomos o caminho todo em silêncio.

Quando chegamos ele saiu do carro, abriu a porta pra mim, me ofereceu sua mão como apoio e foi comigo até a porta de entrada. Eu nunca tinha percebido o quanto ele era gentil, cavalheiro.

"Bom, boa noite florzinha."

Ele me deu um beijo na testa. Era exatamente o que meu pai fazia, a semelhança me fez entrar em choque.

Como eu não disse nada ele simplesmente virou as costas e voltou para o carro. Me recuperei a tempo de chamar seu nome enquanto ele dava partida. Ele me olhou do volta, no fundo dos meus olhos, será que podia ver minha alma?

"Boa noite" eu disse quase sem voz.

Ele sorriu, eu sorri, ele foi embora e eu entrei em casa.